Corpo em movimento,
mente em alerta

Os dois lados da cultura GymRats

Por Douglas Soares, Evellyn Fernanda, Gabriel Cézar, José Davi e Rafaele Cristine

Todo mês de janeiro, o cenário se repete: gente nova na academia, planos de mudança de vida e promessas de “agora vai”. É quase certo que pegar firme na academia vai estar na lista de propósitos para mais um ano que se inicia.

O movimento cresce tanto nesse período que cerca de 80% das novas matrículas em espaços de exercícios físicos, de acordo com um relatório da ZipDo, acontecem em janeiro, no famoso efeito da “resolução de Ano Novo”, mas… e depois?

Em 2023, o setor fitness movimentou cerca de US$112,2 bilhões, o equivalente hoje a R$628 bilhões, segundo a Fortune Business. A projeção é de que o mercado cresça a uma taxa média de 8,83% ao ano até 2030, alcançando uma receita estimada de US$202,78 bilhões, aproximadamente R$1,135 trilhão.

person about to lift the weight plate

Apesar do tamanho e do crescimento esperado, quase metade das mensalidades de academias permanecem inativas após um mês.

O acesso por si só não é suficiente. É preciso cultivar engajamento, criar uma rotina e encontrar motivação para manter a prática.

E para quem está começando ou tentando se manter ativo, até mesmo uma simples atividade física — que nem sempre é um exercício formal — já representa um passo importante. Você sabe qual é a diferença entre atividade e exercício físico?

Quem explica é o personal trainer Anderson Pitanga, membro do Conselho Regional de Educação Física (CREF).


Com a pandemia de covid-19, esse desafio de manter a prática regular encontrou uma nova aliada: a tecnologia. O mundo digital invadiu o universo fitness e transformou o modo como as pessoas se movimentam.

O uso de aplicativos e dispositivos para atividade física cresceu 30%, com mais de 900 milhões de pessoas no mundo usando os apps como parte de seus treinos. No Brasil, esse comportamento tem se apoiado no famoso ‘GymRats’, que em tradução livre, significa ‘ratos de academia’.

A expressão ganhou força nas redes sociais, principalmente entre os jovens, como uma forma leve e bem-humorada de se identificar, bem diferente da conotação negativa que o termo pode sugerir à primeira vista.

Sabe aquele tipo de pessoa que parece ter feito da academia uma segunda casa? Que conhece cada aparelho, cada canto do lugar, e que você sempre encontra por lá de manhã, de tarde ou até no sábado cedo? Pois é, estamos falando do famoso “rato de academia”, ou como dizem lá fora, o gym rat.

Mas calma! Apesar do nome curioso, ninguém está chamando ninguém de roedor. A ideia vem do comportamento desses apaixonados por treino, que se infiltram em todos os espaços da academia com a mesma curiosidade incansável de um ratinho explorador. São pessoas que mantêm uma rotina de treinos muito consistente, com idas quase diárias à academia e dedicação aos exercícios.

Embora o apelido possa soar pejorativo no primeiro momento, muita gente o assume com orgulho. Para muitos, ser um gym rat é um estilo de vida marcado pela disciplina, pela vontade de evoluir e por um bom repertório de dicas sobre treinos, alimentação e suplementação.

Diferente do estereótipo do “marombeiro raiz”, o rato de academia não é, necessariamente, um mestre da hipertrofia. Pode ser só alguém que encontrou prazer e equilíbrio no simples hábito de se movimentar, de suar a camisa e de se desafiar um pouco mais a cada treino.

O aplicativo figura em 1º lugar na categoria Saúde & Fitness na Apple Store (iOS), com mais de 64 mil avaliações e nota 5.0 e 4.7 na Play Store (Android), alcançando mais de 1 milhão de downloads. Virou fenômeno nesse universo, principalmente entre os mais jovens.

O sucesso do app não se resume aos números impressionantes nas lojas de aplicativos, ele se revela, principalmente, nas rotinas atravessadas por quem o utiliza. É o caso do Natan Dias, estudante de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que encontrou na plataforma um aliado para encarar seus dias com mais energia, mesmo com os desafios da vida acadêmica. 

“Eu percebi que o aplicativo me ajuda a manter uma rotina mais ativa quando eu estava indo para a academia todo dia. A gente sabe que o GymRats é uma competição, mas às vezes eu não estava levando tanto para esse lado. Eu sou uma pessoa competitiva? Sim, mas eu não contava apenas com isso, porque não é fácil você acordar cedo todo dia por conta da rotina de estudos”, conta. 

Com os únicos horários livres antes do amanhecer, Natan adaptou seus treinos para às 5h da manhã e encontrou no GymRats um ponto de apoio. “O aplicativo me ajudou a perceber que eu estava com disposição mesmo fazendo essa loucura [...] acho que isso se deve ao incentivo de continuar ativo.”

A couple of men working out in a gym
a man running on a path
a man standing in a gym holding a rope

Lançado em março de 2019 nos Estados Unidos pelo cientista da computação Mack Hasz, o aplicativo só caiu no gosto dos brasileiros a partir do ano passado. Desde então, cerca de 100 mil ‘ratos de academia’ já participaram dos desafios, totalizando mais de 2 milhões de exercícios logados em todo o mundo. 

A plataforma se popularizou por incentivar a prática de exercícios e atividades físicas por meio de desafios e competições entre usuários através de uma comunidade criada no app. Após o treino, o usuário realiza uma espécie de check-in com uma foto e/ou vídeo, comentando algo sobre a atividade que fez naquele dia. 

Os desafios surgem por diferentes motivações, e no caso de Natan, a ideia ganhou força entre os colegas da universidade como uma forma de driblar a rotina puxada e manter o foco na saúde.

“Eu comecei a experimentar o aplicativo e criei um grupo com amigos universitários, que eu entendo a questão de que às vezes é difícil conciliar a universidade com os treinos e foi mais numa base de incentivo tanto na questão das atividades físicas, que a gente sabe que para você praticar você precisa dispor de tempo. Foi mais nesse propósito, de incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo”, conta o jovem.

Com o tempo, a prática deixou de ser apenas uma forma de manter o corpo ativo e se tornou também um elo de conexão entre eles.

“Eu acho que o aplicativo me aproximou sim dos meus amigos, porque além do incentivo, a gente sempre conversava sobre como é que estavam os treinos, dava o feedback para o outro, comentava da dificuldade de ir, principalmente em final de período que é comum a gente não ir com tanta frequência. O incentivo ele funciona e aproxima, porque eu acredito que quando tá vendo que a pessoa tá lá, fazendo a atividade física dela, acaba te inspirando e isso vai criando aquele laço, não só de motivação, como afeto também.”

Comunidade e pertencimento

man fist bump to man laying on ground

A dinâmica de grupos no aplicativo desperta um senso de pertencimento, como se o usuário fizesse parte de uma comunidade. Esse sentimento atende a uma necessidade emocional fundamental do ser humano, que é estar em conjunto. Para participar, é preciso entrar em um desafio coletivo, o que fortalece ainda mais os vínculos entre os participantes e transforma o exercício físico em uma experiência coletiva e afetiva.

Essa característica, somada à praticidade do app, parece ser um dos principais fatores que explicam o sucesso do GymRats, especialmente quando comparado a outros aplicativos com funcionalidades semelhantes como Strava, Nike Training Club, Adidas Training, Freeletics e FitOn.

Para compreender de que forma o senso de comunidade se manifesta entre os usuários, realizamos uma pesquisa online com usuários engajados e familiarizados com o tema. O questionário foi divulgado por meio das redes sociais e reuniu, ao todo, 87 participantes. 

Mesmo em modalidades tradicionalmente mais comuns e solitárias como a musculação, o app pode ser um meio de fortalecer o contato com os exercícios físicos e o vínculo social entre amigos, familiares, companheiros e até mesmo colegas de trabalho. 

“Eu acho sim que a competitividade ajuda, você tá ali no desafio com seus amigos e vocês acabam se motivando pela competição, né. Você pensa ‘poxa, eu tô indo bem”
Juliana Castro, consultora em Comunicação

Para os entrevistados, 34,5% acreditam que participar desses desafios contribui bastante para manter uma rotina mais ativa, enquanto 19,5% acreditam que tende a ser positivo de certa forma. Juliana Castro, consultora em Comunicação, revela que o GymRats ressignificou sua relação com os exercícios físicos. 

“Acredito que o aplicativo me ajudou, sim, a praticar mais, mas principalmente me ajudou a visualizar a minha rotina. No dia a dia, a atividade física acaba sendo engolida pela nossa rotina e quando temos acesso a um ambiente ali, onde é possível acompanhar o seu dia a dia, você consegue visualizar melhor os seus hábitos semanais, assim é mais fácil entender os dias que você normalmente vai mais, como é que tá sua rotina naquela semana, e como é que você pode ajustar melhor”, conta.

Juliana passou a identificar facilmente as oportunidades de melhoria na rotina de exercício e a visualizar seu desempenho, tendo os desafios como uma motivação extra.

O gráfico a seguir, com base na análise dos dados coletados da nossa pesquisa, mostra que amigos e colegas de trabalho lideram como os principais parceiros de desafio, mas familiares e companheiros também aparecem como aliados nessa jornada.

No GymRats, a conexão vai além do treino. Pelo feed, a interação ocorre através de reações, comentários e aquela motivação mútua entre parceiros de desafio. Tem até chat para trocar mensagens e combinar treinos. Essa rede de apoio digital, que muitas vezes falta nas academias convencionais, pode ser justamente o impulso para transformar intenção em hábito.

Juliana costuma encarar os desafios ao lado dos amigos e vê no app um verdadeiro motor do bem. Para ela, acompanhar a rotina ativa dos colegas na plataforma é como receber um empurrão carinhoso para não ficar parada. 

“É uma competição positiva, só tem ganho para quem tá participando ali. Então é muito interessante você acompanhar o dia a dia dos seus amigos. É claro que você fica feliz, porque seu amigo que tá ali no desafio com você, ele tá mais saudável, mais ativo, você vê que tipo de exercício ele tá fazendo […] De repente você pensa ‘poxa, legal, vou experimentar esse tipo de atividade também’, mas tem muitos ganhos para você também, porque você para e pensa ‘vou fazer mais, vou participar mais, hoje eu vou experimentar tal atividade, hoje eu vou correr, hoje eu vou fazer, enfim, uma caminhada, vou fazer musculação [...]”, explica.

Ela também destaca a interatividade como um dos pontos fortes da experiência. Castro participa de diversos grupos e garante que isso torna tudo mais leve e estimulante: “É sempre uma brincadeira legal e uma motivação a mais”.

Para muitos usuários, como Natan e Juliana, a competitividade saudável entre amigos funciona como um gatilho benéfico para manter a constância. A cada check-in feito, cresce não só a sensação de compromisso, mas também o entendimento de que pequenos esforços diários podem gerar grandes impactos no bem-estar.

“Eu acho sim que a competitividade ajuda, você tá ali no desafio com seus amigos e vocês acabam se motivando pela competição, né. Você pensa ‘poxa, eu tô indo bem. O meu amigo já foi hoje, eu vou também’. Então é uma competição que tem um resultado muito positivo. No fim do dia você está cuidando da sua saúde”, conta Juliana.

E é justamente esse cuidado diário, quase sem perceber, que transforma a prática em algo maior do que apenas manter o corpo ativo. Para muitos, movimentar-se virou uma forma de desacelerar a mente, aliviar o estresse e encontrar um momento de equilíbrio em meio à rotina. É nesse ponto que a atividade física ganha outro significado: o de ferramenta de autocuidado emocional.

Mais atividade, menos ansiedade

Mais do que promover o bem-estar físico, manter o corpo em movimento é também um remédio para a mente. Em nossa pesquisa, muitos participantes relataram grandes benefícios emocionais e psicológicos com a prática regular de atividades físicas. Energia e disposição, autoestima e ansiedade foram os principais percebidos na rotina, respectivamente.

No Brasil, essa motivação tem ganhado força diante de uma realidade alarmante. Em 2024, o Ministério da Previdência Social (MPS) registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho em razão de transtornos mentais, sendo a maioria por depressão e ansiedade.

E o cenário se agrava. De janeiro a outubro do mesmo ano, o Sistema Único de Saúde (SUS) contabilizou 671.305 atendimentos ambulatoriais ligados à ansiedade. Hoje o país lidera o ranking mundial de pessoas ansiosas, afetando cerca de 9,3% da população, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Camafeu Bondim, profissional autônoma, encontrou na atividade física uma aliada fundamental no enfrentamento do transtorno bipolar afetivo. Assim como ela, muitas pessoas têm percebido que movimentar o corpo também é uma forma de cuidar da mente, transformando o exercício físico em parte essencial do tratamento de transtornos ligados à saúde mental.

Ela lembra que começou a ouvir falar do GymRats e decidiu entrar em um dos desafios recomendados por sua médica, uma decisão que mudaria sua relação com a própria saúde.

“Faz parte do meu tratamento bipolar o exercício físico, uma rotina regrada [...] O tratamento do bipolar é 80% uma rotina de exercícios físicos, alimentação, acompanhamento psicológico e só 20% que é o remédio, então eu uni o útil ao agradável”, conta. 

O tratamento de doenças mentais ganha um reforço poderoso quando os exercícios físicos entram em cena. Respirar fundo, alongar, correr, dançar são pequenas atitudes que, somadas ao acompanhamento médico e medicações, podem transformar o cuidado com a saúde mental. Não à toa, profissionais da saúde recomendam essas práticas como aliadas valiosas nesse processo.

A educadora física Gabriela Galdino, que utiliza essa abordagem como recurso terapêutico com seus pacientes, explica que práticas como essas ajudam a liberar substâncias como endorfina e serotonina, neurotransmissores diretamente ligados à sensação de bem-estar. 

Ela destaca que a prática constante traz impactos visíveis no dia a dia de quem enfrenta sofrimento psíquico, principalmente na autoestima, no autocuidado e na forma como se vê e se cuida.

a group of people sitting on the floor

Foi nessa relação em grupo que Camafeu entendeu e sentiu que fazia parte de uma comunidade, o que foi fundamental para ela manter a constância. Em dias difíceis, a sensação de pertencimento foi o impulso que faltava para não desistir. 

A instrutora explica que corpo e mente não andam separados, pois são partes de um mesmo todo. Por isso, movimentar o corpo é também movimentar afetos, pensamentos e emoções. Quando essa prática acontece em grupo, como nas atividades oferecidas pelo GymRats, ela ganha uma dimensão ainda mais poderosa: vira espaço de troca, de pertencimento e de apoio mútuo. 

Em caminhadas, trilhas ou aulas oferecidas por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo, os laços criados entre os participantes podem ser o ponto de virada no processo de cuidado com a saúde mental.

No caso de Camafeu, esse reencontro foi possível. A musculação, os desafios e a companhia de outros usuários do GymRats não só a ajudaram a manter uma rotina, mas também a se reconhecer com mais gentileza e autonomia. 

“Eu gosto muito de fazer atividade física, me gera um prazer imenso, durante um tempo eu acabei negligenciando isso, mas quando eu vi que era extremamente necessário continuar ativa, fazendo musculação ou qualquer outro tipo de atividade física, eu simplesmente tornei isso uma rotina e eu me sinto bem melhor. Também me ajuda na ansiedade, eu sinto que quando eu faço o cardio, situações nas quais eu ficaria nervosa, eu deixo de ficar, então me ajuda muito”, relata.

Gabriela também verifica que mesmo que a motivação inicial não seja o amor pela atividade física, a experiência coletiva e afetiva ajuda a pessoa a se engajar, encontrar sentido, e eventualmente se apaixonar por aquilo que antes era apenas uma tentativa. 

“Eu entrei mais por uma questão de me sentir parte de um grupo, de me sentir incentivada, principalmente em dias que talvez eu não estivesse tão disposta a me exercitar.”

Camafeu Bondim, profissional autônoma

Ao se estruturar a partir dessa interação, a cultura do GymRats se mostra como uma ferramenta potencializadora para o cuidado com a saúde mental. Aulas coletivas e esportes em grupo fortalecem o sentimento de pertencimento e a valorização de momentos de socialização, um grande aliado para quem está lutando contra esses transtornos que afetam significativa parcela da população brasileira.

Mas como toda prática, o equilíbrio é essencial. O que começa como um espaço de acolhimento e autocuidado pode, em alguns casos, se transformar em um terreno fértil para cobranças excessivas, metas irreais e uma relação distorcida com o próprio corpo.

A pesquisadora comportamental Giulia Tessitore alerta em seu podcast “Em Busca da Rotina Perfeita” que basear um estilo de vida saudável apenas na motivação externa pode ser perigoso. Quando a meta é alcançada, a motivação cresce, mas sem recompensas contínuas ou diante de obstáculos, pode aparecer um ciclo de desânimo, dificultando a manutenção dos resultados a longo prazo.

Quando o treino pesa mais que o peso

Os desafios funcionam como gatilhos para a adoção de novos hábitos. Eles despertam o chamado “fresh start effect”, a sensação de recomeço, como quando o ano vira e surgem novos planos e metas pessoais em que ‘começar na academia’ costuma estar nas linhas do bloco de resoluções de cada um.

Mas esse impulso nem sempre traz apenas efeitos positivos. Quando a motivação vira obsessão e a comparação se torna regra, a busca pelo corpo perfeito e a competição desenfreada podem transformar o que era pra ser saúde em pressão. E aí, o que era pra fazer bem, começa a pesar.

Quando o assunto é atividade física, muita gente acredita que quanto mais, melhor, seja em relação à frequência ou à dor. É o famoso “no pain, no gain”. Mas a verdade é que treinar demais e ignorar os sinais do corpo pode ocasionar exatamente o oposto do que se espera ao buscar uma vida mais saudável. A linha entre compromisso e vício é tênue e, muitas vezes, difícil de perceber. 

Nos últimos anos, o tema ganhou força no debate público. Casos como o da influenciadora fitness Gracyanne Barbosa, que manteve uma rotina intensa de treinos mesmo durante o confinamento no Big Brother Brasil 25, reacenderam discussões sobre os limites entre disciplina e compulsão. Esse tipo de comportamento pode ser um reflexo da vigorexia, também conhecida como transtorno dismórfico muscular. Muitas vezes, essa compulsão está associada à baixa autoestima, perfeccionismo e necessidade constante de validação externa.

No ambiente digital, essa lógica também se reflete. Mesmo as plataformas como o GymRats, que nasceram para incentivar e aproximar, podem acabar contribuindo para um ciclo de comparação, cobrança e sobrecarga. 

Essa foi a realidade em que Rita Martins, estudante de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), se viu imersa. Ao começar a utilizar o aplicativo com seus amigos, ela relata que, quando faltava a academia, por algum motivo, sofria com comparações e pressões que abalavam a sua percepção sobre ela mesma. 

“Teve uma época que eu deixei de frequentar a academia, por questões pessoais, e eu ficava me sentindo pior, como se se a qualquer momento eu fosse perder tudo que eu já ganhei de uma hora para outra”. Para a instrutora física Gabriela Galdino, é exatamente nesse ponto que entra o alerta de profissionais de saúde. 

Essa busca incessante por um corpo ideal, somada à dinâmica competitiva dos aplicativos de treino, pode desencadear o chamado overtraining, ou síndrome do excesso de treino, uma condição que surge quando o corpo não tem tempo suficiente para se recuperar, seja por falta de descanso ou aumento desproporcional de carga.

Em entrevista à GQ, o fisioterapeuta Adriano Xavier reforça que a intensidade, por si só, não é o problema, mas que o risco está no desequilíbrio. Para ele, é importante encontrar um equilíbrio entre a intensidade do exercício e o descanso para evitar o overtraining e promover desempenho físico aliado a uma boa saúde. 

Segundo o profissional, um treino forte refere-se a um programa de treinamento desafiador e bem estruturado que busca estimular o corpo e promover ganhos de desempenho. Nesse caso, a prática é intensa, mas adequada e balanceada.

No entanto, quando o exercício físico deixa de ser prazeroso e passa a ser uma necessidade obsessiva, há um problema. Os vícios comportamentais, como a dependência de treino, se instalam aos poucos. Os sinais costumam ser ignorados até que o corpo, ou a mente, grite. Entre os sintomas mais comuns estão lesões recorrentes, queda de rendimento, irritabilidade, distúrbios hormonais e isolamento social. A dependência gera uma relação destrutiva com a atividade física.

E o problema vai além do físico. A exposição contínua a corpos padronizados e performances elevadas contribui para distorção da autoimagem. Mesmo com resultados visíveis, a pessoa não se enxerga como suficiente. Nunca forte o bastante. Nunca magra o bastante. Nunca ativa o bastante.

Esse ciclo de insatisfação permanente pode fragilizar a própria motivação para continuar e enfraquecer a conexão com o corpo. Para Gabriela Galdino, é justamente nesse ponto que a escuta e o respeito aos próprios limites se tornam essenciais. A especialista afirma que esse movimento de cobrança constante só se transforma quando há escuta e acolhimento.

woman looking at mirror

Essa perspectiva resgata uma crítica cada vez mais presente: a forma como a sociedade transforma o corpo em alvo de metas, muitas vezes impostas sob a falsa ideia de superação constante. E janeiro, com seu apelo simbólico de recomeço, se torna o palco ideal para o surgimento de promessas grandiosas. 

Esse comportamento não surge por acaso. Está atrelado a construções sociais profundas, que associam valor pessoal à aparência e disciplina à performance. Nesse cenário, cuidar do corpo muitas vezes é confundido com moldá-lo a qualquer custo, mesmo que isso envolva dor, privação ou comparação excessiva. 

A cultura do “corpo ideal”, reforçada por redes sociais, plataformas digitais e influenciadores, não apenas estimula padrões inalcançáveis como fragiliza a autoestima de quem tenta segui-los. O que começa como entusiasmo pode rapidamente se transformar em frustração, culpa ou abandono.

Um estudo realizado pelas universidades espanholas Pompeu Fabra (UPF) e Oberta de Catalunya (UOC) revelou que o impacto das mídias sociais no bem-estar psicológico é mais negativo entre meninas adolescentes, especialmente entre usuárias frequentes de Instagram e TikTok. A pesquisa, publicada na Revista de Comunicación, analisou as percepções de mais de mil adolescentes e identificou que as meninas tendem a se sentir mais pressionadas em relação à aparência, além de dependerem mais da aprovação externa. 

Aplicativos e comunidades fitness, como o GymRats, podem potencializar esse efeito quando se tornam arenas de competição e cobrança. A busca por metas mais realistas, que levem em conta o ritmo de cada pessoa, aparece como alternativa possível diante desse cenário. Cuidar do corpo envolve mais do que constância e disciplina, mas também escuta, descanso e equilíbrio. 

Ao reconhecer que metas inalcançáveis fazem parte de uma estrutura social que condiciona o valor do indivíduo ao corpo que ele habita, é possível ressignificar o movimento como um ato de presença, não de punição. Afinal, saúde não é sinônimo de exaustão. E nenhuma meta vale a desconexão com o próprio corpo.

a man flying through the air while riding a skateboard